A história da saúde no Brasil
Criação do Sistema Único de Saúde (SUS) garantiu o acesso à saúde para todos
Desde a década de 1990, muitas crianças brasileiras já nasceram e cresceram com um dos direitos básicos do cidadão garantido: o acesso à saúde. Esse sistema universal nem sempre foi uma realidade, mas uma série de movimentos políticos e sociais foi indispensável pela criação de um dos grandes projetos públicos de saúde do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Saúde antes do SUS
INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), Santas Casas e compra de atendimentos médicos: essas eram as maiores maneiras de ter acesso aos serviços de saúde no Brasil antes do SUS.
Carlos Henrique Assunção Paiva, doutor em Saúde Coletiva e Coordenador do Observatório História e Saúde (COC/Fiocruz) explica que nos anos 1970 o INAMPS garantia esse acesso apenas para trabalhadores formais, ou seja, aqueles que tinham carteira de trabalho assinada. “No correr desta mesma década, de forma crescente, os serviços do INAMPS vão se abrindo para não contribuintes, incorporando, assim, trabalhadores rurais, empregadas domésticas, etc”. Baseado na economia, a filosofia desse sistema ainda via a saúde como um problema individual. A universalização dos serviços de saúde foi se estabelecendo aos poucos, como pontua Carlos Paiva.
Instauradas no Brasil desde os séculos XVI e XVII e de natureza filantrópica, haviam as Santas Casas de Misericórdia que funcionam até os dias atuais. “Na sua origem, tais instituições de saúde atendiam aos mais pobres ou sem condições de arcar com os gastos de assistência à saúde”, conta o Coordenador. E ressalta: “Essa rede se amplia e ainda hoje é fundamental para a assistência à saúde no âmbito do SUS”. Paiva também conta que as compras de serviços médicos podiam ser feitas por meio de pagamentos diretos de profissionais liberais ou pelas operadoras de plano de saúde.
A criação do SUS e suas transformações
Em meio ao período de lutas contra a ditadura militar no Brasil, os anos 1970 e 1980 foram marcados pelo movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), que resultou na oficialização do SUS na Constituição de 1988. “A RSB envolveu vários segmentos sociais, profissionais de saúde, pesquisadores do campo, estudantes, lideranças políticas populares e locais e também lideranças do Parlamento brasileiro”, explica o doutor em Saúde Coletiva.
Dentre muitas ideias no movimento, algumas eram consenso entre todos os membros da reforma. Paiva conta que restaurar a democracia formal e implementar condições efetivas de viabilizá-la para os cidadãos foram pontos defendidos pelos sanitaristas.
As ideias para a formação do SUS ganharam força também a partir da articulação do movimento sanitarista com outros movimentos, como o municipalista e o de críticas à maneira de como funcionava a saúde pública no país, como exemplifica o coordenador. Até que em 1986 foi realizada a Oitava Conferência Nacional de Saúde. “A conferência construiu consenso em torno de algumas teses que são estruturantes do SUS, tais como: universalização, integralidade, descentralização, participação social e outras”, explica Paiva.
Com a Carta Constitucional de 1988, a saúde passa a ser vista como um direito de toda a população e um dever do Estado. O doutor em Saúde Coletiva ainda complementa: “As Bases legais e institucionais do SUS seriam completadas em 1990, com o processo de regulamentação do novo sistema de saúde (leis 8.080/90 e 8.142/90). Suas bases institucionais estavam assim estabelecidas”.
Vacinação em escala nacional, fornecimento de medicamentos e assistência aos portadores de HIV/AIDS e o Sistema Nacional de Transplantes são algumas das muitas ações do SUS que transformaram a área da saúde no Brasil. “Desde a sua implantação, em 1990, ainda que de forma não linear, somos testemunhas do desenvolvimento de diversas políticas e programas importantes”, diz Carlos Paiva.
Ele também ressalta que ainda há um longo caminho a percorrer, já que, por exemplo, as formações acadêmicas da área médica ainda estão centradas nas ações de cura e não na prevenção e promoção da saúde e em ações e políticas no campo da atenção primária: “Infelizmente não conseguimos, ainda, adequar a força de trabalho da saúde para essas orientações e políticas”.
Serviços e responsabilidades
O SUS é um sistema amplo, que vai desde a assistência à saúde até o fomento a pesquisas e fiscalizações. “É bom lembrar, por exemplo, que instituições como a Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, é também o SUS”, comenta o Coordenador. Ele destaca a produção de medicamentos, vacinas e insumos para a saúde nacional realizadas pela Fiocruz, como parte do SUS, por intermédio de unidades técnicas como a Far e Bio-Manguinhos.
Carlos Paiva lembra outros papéis atribuídos ao SUS: o de monitorar as condições de saúde do país inteiro e o de fiscalizar a produção e consumo de vários produtos, como os alimentos. “Como se vê, embora muita gente pense que o SUS é hospital ou, na melhor das hipóteses, assistência à saúde, ele é um conjunto bastante amplo de ações e políticas. Nesse sentido, podemos concluir que todos, sem exceção, são beneficiários do SUS”, comenta.
Administração
Descentralizado e regionalizado, o sistema administrativo do SUS é complexo. Carlos Paiva explica que a sua condução depende da ação de outros lugares federativos. “Em um desenho inédito, considerando seu tamanho e cobertura, ele é descentralizado em direção aos municípios. Estamos falando, só considerando os municípios, de 6.570 gestores do SUS (secretários municipais de saúde)”, conta o doutor em Saúde Coletiva. E acrescenta que esses secretários devem se articular de maneira regionalizada para a racionalização da oferta de serviços de saúde e compartilhamento de leitos e outros recursos.
Embora as duas últimas décadas tenham sido positivas no âmbito de pactuação federativa, Paiva pontua como os conflitos entre os entes federados prejudicam a coordenação desse sistema e o próprio cidadão: “Por exemplo, a crise sanitária deflagrada pela Covid-19 nos mostra que, no seu enfrentamento, o pacto federativo em saúde foi bastante esgarçado, não é verdade? Há uma proliferação de discursos e ações descoordenadas entre os entes federativos”.
Há também representantes da população nas conferências e conselhos de saúde, “mas a participação popular ainda precisa lidar com o que poderíamos chamar de um ‘aparelhamento’ dessas instituições participativas, notadamente os conselhos, por atores que não representam a população”, alerta Carlos Paiva.