A poeira que o tempo deixou
“As maiores fortunas estão nas pessoas que têm as melhores bibliotecas”, diz Maristela Calil, que há 35 anos dirige o sebo mais antigo da cidade de São Paulo. A Livraria Calil e Antiquaria tem aproximadamente 70 anos e muitas histórias entre suas prateleiras. Os livros espalham-se por elas e acumulam-se em pilhas numa bagunça organizada que dá ao lugar uma sensação de familiaridade e sabedoria.
Maristela é uma mulher de grandes sorrisos e comunicativa. Formada em biblioteconomia e especializada em bibliofilia, toda sua formação é para cuidar do legado que seu pai, Líbano Calil, lhe deixou. O acervo conta com quase 400 mil livros, alguns deles muito raros, da época de Gutenberg. “Nós fazemos o trabalho de encadernação e restauração pra poder recuperar o livro e deixá-lo ai eternamente, porque eu tenho livros de 1500 em perfeito estado”, diz Maristela e explica que a livraria possui um especialista em restauração, mas que ela mesma já fez cursos e realiza os consertos rápidos.
Seu olhar de especialista é uma vantagem na hora de adquirir os livros. “Tem bazar por aí que
você compra livro por dois reais. Eu fiz isso e vendi o livro por setecentos. Encontrei a oportunidade e aproveitei. É porque eu conheço, a gente tem um olho clínico”, conta. E não são apenas livros que Maristela compra, são bibliotecas inteiras. “Eu tenho bibliotecas que estão fechadas há 22 anos. Investi muito dinheiro nelas. Eu prefiro dinheiro investido num livro do que no banco. Tem muita gente quebrando porque não tem material para trabalhar, a
livraria não, porque está tudo estocado”, diz.
Como também é uma antiquaria, a Livraria Calil vende gravuras e fotos antigas. Elas ficam espalhadas em um balcão, cuidadosamente enquadradas em papel e embaladas. É como se fosse possível comprar um pedaço do tempo. Porém, dentre as muitas histórias narradas entre as páginas amareladas, as mais preciosas são aquelas que não estão escritas no papel. Ao pegar uma fotografia do Jóquei Clube, Maristela conta: “Tinha um polonês maluco, meu amigo, que era diretor e ele ganhou um prêmio internacional com os filmes dele. Infelizmente, tudo que ele ganhava apostava nos cavalos. Acredita que o cara morreu na miséria? Ele pegava livro em bazar e vinha vender para gente em sacolinha. Era um cara inteligentíssimo. A gente comprava livros dele para que ele pudesse comer, mas ele pegava dinheiro e ia apostar. Ele dizia que era o passatempo dele. Era o vício. Ele largava alguns livros aqui, dizia que voltava para pegar, mas nunca mais voltou, morreu na miséria”. Ela conclui: “São as histórias que ficam na livraria. A gente tem essa parte moral também, de ajudar as pessoas, mas às vezes não ajuda para o bem, né?”.
Maristela também revela que a livraria serviu de cenário para um filme. “Sabe aquele filme, Marighella? O diretor é o Wagner Moura. Parte dele foi filmado aqui”, conta. E de fato, o ambiente possui aquela carga nostálgica cinematográfica, acentuada pelo número de enfeites antigos pendurados nas paredes e entre os livros. Quanto às vendas, a dona explica que alguns livros entram e saem muito rápido. ”Acontece de um cliente ver um livro, mas não pegar na hora e quando volta duas horas depois o livro foi vendido para outro”. Alguns são livros que apenas colecionadores procuram, vários volumes raros – com cem cópias no mundo todo – de valor inacreditável. Porém, Maristela tem uma política de não vender esses livros para o exterior. “Acho que o material deve permanecer no Brasil”, afirma.
A livraria possui uma riqueza inestimável, e o que pode parecer apenas poeira à primeira vista, esconde segredos centenários. Se a afirmação de Maristela sobre fortunas e bibliotecas é verdadeira, ela é uma mulher muito rica. Para encontrar esse paraíso de histórias, basta ir até a Rua Barão de Itapetininga, nº88. Ela localiza-se no 9º andar e fica aberta de segunda a sexta, das 10h às 17h e de sábado das 10h às 13h.