As faces da cultura do cancelamento
A cultura do cancelamento surgiu para expor posicionamentos considerados errados, como por exemplo ideias racistas, homofóbicas e machistas. Ao longo do tempo, passou a funcionar como uma ferramenta para se opor a todos aqueles que têm posturas diferentes da opinião entendida como dominante pela maioria. O termo “cancelamento” é o sinônimo de boicote e costuma ser aplicado a figuras públicas, que tenham feito ou dito algo considerado ofensivo, preconceituoso ou polêmico.
Essa nova era de ataques virtuais ganhou força em 2017, durante o movimento #MeToo que tinha como propósito expor situações de assédio e abuso sexual nos bastidores de Hollywood. A ideia era trazer a tona os crimes de uma pessoa e, pela pressão pública, exigir que ela se redimisse e pagasse por eles. “O que estava em pauta eram questões graves, sérias. Hoje, vejo que falta relativização, aprofundamento, sensibilidade e empatia. É muito mais uma vontade de ‘lacrar’ no Twitter do que de melhorar alguma coisa”, aponta Melissa Resch, jornalista e co-criadora do perfil VOZcolab.
Dentro dessa cultura surgiram ramificações como o termo “linchamento virtual”. “Linchar” significa fazer justiça com as próprias mãos e no “tribunal da internet” ganha um novo sentido, um comentário mal interpretado ou um simples erro são o bastante para declarar qualquer um como culpado. Diante disso, milhares de pessoas se unem para xingar e humilhar uma única pessoa com a finalidade de puni-la por seu erro. O linchamento pode ser virtual mas tem consequências reais, como demissões, traumas emocionais e até mesmo o suicídio.
Na internet, as pessoas são livres para falar o que quiserem e costumam falar coisas que não diriam na vida real. “Atrás de uma tela fica fácil. Não tem exposição, não tem contra-argumento, não tem que encarar o silêncio, as pausas e nem a fúria do outro”, explica a estudante de psicologia Thays Torres. No entanto, como são milhões de comentários, muitos não se sentem culpados pela dor que podem causar no cancelado.
Existe um novo mecanismo na psicologia chamado “projeção e transferência”, que busca explicar mais sobre esse fenômeno. “As pessoas tendem a rejeitar no outro algo que de algum modo rejeitam também em si mesmas. E o ataque ao outro provoca um certo alívio ao expulsar de si algo que seria socialmente (e pessoalmente) inaceitável”, explica a psicóloga e psicanalista Fabiana Faria. Essa idealização acontece muito na realidade paralela das redes sociais, onde tudo parece ser perfeito, uma vez que os usuários publicam apenas momentos felizes. “O problema é que essas construções se distanciam em muito do que é de fato a realidade de uma pessoa em toda sua complexidade. Quando os defeitos, contradições e imperfeições dessas pessoas aparecem, acabam por ser alvo de ataques em massa”, complementa Fabiana.
Qualquer um pode ser alvo do cancelamento, porém quem tem maior visibilidade está mais propenso a passar por essas situações, afinal estão sendo vigiados por mais pessoas. Por exemplo, o caso recente da influenciadora Gabriela Pugliesi, que durante a quarentena reuniu amigos em sua casa e publicou stories no seu perfil do Instagram, que acumula mais de 4 milhões de seguidores. Foi o motivo pelo qual os “justiceiros da internet” buscaram o perfil de patrocinadores da influencer, pedindo a quebra de contratos. Além de irem ao próprio perfil da blogueira deixando comentários ofensivos. E por isso, Gabriela desativou seu Instagram por três meses e foi estimado um prejuízo de 3 milhões de reais em seu patrimônio, segundo informações divulgadas pela Forbes.
Essa vigilância massiva dos discursos pode excluir a possibilidade de debate ou de que os envolvidos possam aprender com os próprios erros. “O cancelamento deve ser ressignificado. Não é fazer vista grossa ao que não foi bacana ou ao que foi bem ruim, mas lidar com essas situações de forma responsável. Temos que cancelar comportamentos e não pessoas”, afirma Nayanne Bitencourt, publicitária e criadora de conteúdo no perfil Diferenton4 no Instagram.
Durante anos era comum encontrar propagandas relacionadas às marcas de cerveja com conteúdo machista, o que no mundo atual gerou revolta e consequentemente o cancelamento. Após diversas críticas, muitas marcas repensarem seus conceitos e os modificaram. “Acredito que existem situações em que o cancelamento produz reflexões e mudanças importantes. Neste caso, creio que temos um resultado de avanço e de diálogo extremamente necessário”, pontua a psicóloga Fabiana.
Neste sentido, Melissa Resch, acredita que a alternativa para os ataques virtuais seja o exercício da alteridade: “Entender que existe o outro e existe a visão do outro. Por mais cansativo que seja, é preciso oportunizar o diálogo, a empatia, a construção da mudança. Porque ao ‘cancelar’ uma pessoa, ela não deixa de existir, apenas é tolhida, calada.” Além disso, complementa dizendo que é impossível excluir uma voz do mundo “As pessoas, têm suas visões, preconceitos, opiniões e crenças, quer a gente queira ou não, e acho essencial dialogarmos. Palavras tem importância. É importante que as pessoas se mantenham vigilantes e atentas, porque isso significa força para mudanças necessárias”.