#Iluminarte – Na Boca do Lobo
Comparado com o sucesso de Childish Gambino, “This is America”, Criolo lança “Boca de Lobo”, uma música cheia de mensagem e referência a momentos históricos, políticos e sociais brasileiros. No primeiro Iluminarte, exploramos o significado de elementos presentes no clipe e na canção, que vai muito além de uma melodia para ouvir apenas nos fones.
O clipe já escancara o que ele quer mostrar: o país em caos por tudo que está acontecendo ao nosso redor. “Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu”. O respeito se perde em meio ao tanto de problemas sendo evidenciados. A cena que abre o vídeo mostra o Edifício Wilton Paes de Almeida, o prédio que desabou no dia 1 de maio de 2018 pegando fogo, enquanto podemos ouvir ao fundo sons de panelas batendo, fazendo referência aos panelaços feitos durante pronunciamentos da ex-presidente Dilma, colocando assim a primeira crítica do clipe: as manifestações das pessoas, literalmente dentro do caos.
Enquanto vemos a confusão em meios às ruas, pode-se observar uma pessoa notando tudo da janela de sua casa, como se manifestasse sem se colocar em meio a luta. Na cena seguinte, a cavalaria toma conta da tela, mostrando pessoas e as patas de cavalos, relacionando um com outro, como se fossem a mesma coisa.
Quatro policiais montados em seus cavalos são evidenciados em um corte rápido. O animal representa impetuosidade e os impulsos humanos. A cena de quatro cavaleiros já é conhecida na cultura cristã. Os quatro cavaleiros do apocalipse, que representam a Guerra, Peste, Fome e Morte, é o que veremos em sequência no clipe. Após isso, é possível rapidamente visualizar a notícia do Museu Nacional pegando fogo na TV de um bar.
Em uma clara referência à sociedade do espetáculo, um homem morto com um capacete aparece em cena, com todos ao seu redor utilizando celulares para fotografar o momento. Ao seu lado, é possível visualizar uma maçã e um papel que se assemelha a um contrato, ambos manchados de sangue. Estes representam o mal, a escolha errada que fizeram (uma espécie de quebra de contrato, como o pecado original cometido na Bíblia), tanto em questões morais, como políticas, e ao mesmo tempo, simbolizam a busca pela sabedoria e liberdade para sobreviverem.
Podemos notar em uma cena rápida, uma mesa de escola com uma refeição de aparência ruim e não tão saborosa, com bolachas de água e sal e um copo de suco, lembrando-nos do descaso com a alimentação das crianças na escola na gestão Dória de São Paulo.
A cidade passa por um ‘blackout’ para que ninguém veja todo o caos que está acontecendo, e logo após é possível visualizar uma explosão, que logo se transforma em fogos de artifícios, referenciando mais uma vez a sociedade do espetáculo e a situação sendo tratada como uma festa ou comemoração.
Uma criança é resgatada por uma ambulância, e o uniforme de um dos funcionário está escrito PEC 55, a PEC do Teto dos Gastos, aprovada em 2016, que trata do congelamento no investimento em educação, saúde etc. por 20 anos. O menino que é socorrido aparece sangrando, com uma camiseta de escola municipal do Rio de Janeiro, lembrando da violência e dos confrontos que fizeram crianças morrerem inocentemente nas escolas da cidade, recordando o caso de Marcos Vinícius, que foi atingido por uma bala perdida em uma operação da Polícia Civil, que resultou em um tiroteio no complexo da Maré. Ao mesmo tempo, o menino, sua pose e todo o contexto se assemelham muito a foto de um garoto sírio que viralizou na internet.
Um morcego surge simbolizando Michel Temer, que foi ironizado e associado à imagem de um vampiro na internet. O animal causa medo nas pessoas e sobrevoa a cidades. Estas aparecem com armas e assustadas com o que está acontecendo. Em seguida, uma mulher muito semelhante à Marielle Franco é mostrada rapidamente, e logo após, visualizamos cartazes, em que estão escritos alguns nomes, incluindo o da própria Marielle.
Finalmente conseguimos ver a Boca de Lobo, uma cratera que surge na rua, e curiosamente não saem lobos de lá. Ratos tomam conta do cenário, logo após uma cena que mostra o metrô paulistano, provavelmente fazendo uma alusão ao trensalão, um esquema de corrupção no estado de São Paulo, que resultou na formação de um cartel para fraudar licitações do metrô e da CPTM.
Enquanto a população se arma com o que tem para lutar contra tudo o que está acontecendo, os versos da música cantam “Um por rancor, dois por dinheiro, três por dinheiro, quatro por dinheiro, cinco por ódio, seis por desespero, sete pra quebrar a tua cabeça num bueiro”, uma referência aos Racionais. Nesse momento, a elite aparece bem trajada, usando drogas e bebendo, queimando dinheiro e mostrando como algumas pessoas ganham com o sofrimento alheio, além de fazer referência ao evento de 2009, conhecido como “Farra dos Guardanapos”.
É quase impossível não associar o próximo corte com a frase “O homem é o lobo do homem”, de Thomas Hobbes, em que as pessoas estão lutando umas contra as outras, enquanto tudo está em colapso, e ao mesmo tempo se observa a mensagem “Fica, resiste, enfrenta” em um dos escudos, como uma motivação para fortalecer o povo em meio a tudo isso. É possível ver também a frase “Preta, nua e crua”, que é o nome de um livro de Mel Duarte, famosa por seus slams, livros e poesia sobre resistência, negritude, etc.
No momento em que as pessoas estão se enfrentando, surge uma cobra e faz com que os grupos se unam e fujam, mostrando que o inimigo é maior do que a luta entre a população.
Logo após, o clipe mostra a imagem de uma carteira escolar em meio à chamas. A cena faz referência às manifestações dos secundaristas, mobilizações e ocupações feitas por estudantes nas cidades do estado de São Paulo, nos anos de 2015 e 2016.
Em meio as pessoas correndo, fugindo dos seres maiores que estão assombrando a sociedade, vemos uma mulher gritando enquanto roda a bandeira do Brasil em sua mão. A cena faz uma alusão à Davi se preparando para derrotar Golias, o famoso gigante bíblico.
Na cena seguinte, o clipe mostra um porco gigante em uma cidade coberta de lama, a referência é clara ao acidente do rompimento da barragem na cidade de Mariana, em Minas Gerais. O animal se esbalda na lama e os takes seguintes captam obras de artes sujas de lama, evidenciando a desvalorização da arte no Brasil.
O clipe segue e a aparição de animais gigantescos em meio a cidade já é comum. Vemos um urubu sobre um prédio de saúde pública, como se esperasse os corpos virarem carniça para se alimentar. Mais um animal aparece sobre um prédio, dessa vez é um tucano que golpeia um helicóptero e o transforma em pó, lembrando o caso conhecido como “Helicoca”, que foi uma apreensão de 450 quilos de cocaína na aeronave de Zezé Perrella.
Em uma sequência com diversos cortes, mostrando engravatados furtando notas de dinheiro, lembrando diversos casos de crimes de colarinho branco no Brasil. Em um desses, ao fundo, pode-se ler a frase: “Não fale em crise. TRABALHE”, que é auto-explicativa, sugere que as pessoas não questionem ou pensem sobre a crise, apenas produzam, de maneira quase que automática. No mesmo take, podemos reparar um calendário escrito: “Agro é toxic.”, a frase é uma paródia da campanha da emissora Rede Globo “Agro é tech. Agro é pop. Agro é tudo.” Além de trazer, implicitamente, uma referência à “Lei do Veneno”, um projeto de lei que tem como objetivo mudar a legislação de agrotóxicos no Brasil, priorizando o lucro ao invés da saúde.
Para encerrar, o clipe que foi lançado 7 dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, o vampiro, que já apareceu, sobrevoa o planalto e vem em direção à câmera, deixando o distrito federal.
Assim, o rapper assina seu clipe. Cheio de mensagem e informação, Criolo lança, não apenas uma música, mas sim um protesto melódico.
Por Flávio Henrique, Giovanna Cortez e Pedro Rocha
Foto: Reprodução