A frieza derretida aos olhos da inocência

Arte: Gabriel Magalhães Gomes

A realidade parece ser uma trama tecida por nós mesmos como um véu ao nosso redor. Discernimos apenas pálidas formas humanas por detrás de sorrisos ensaiados.

Mas às vezes, só às vezes, algumas pessoas irrompem pelo nosso véu finamente tecido.

Era fim de tarde. Pessoas mudas espremidas dentro de um vagão de metrô sufocante. Tão sufocante que poderia ser comparado ao estado de suas próprias almas.

Num banco estava uma criança negra, semelhante na aparência com a personagem de Negrinha, conto de Monteiro Lobato. Mas essa não se sentava quieta num canto como no conto do autor. Tampouco tinha sua boca aberta para receber um ovo quente e toneladas de racismo. Mas sim, um enorme e fresco sorvete de morango que uma total estranha lhe oferecia com risos.

Essa estranha – como chamar de outra forma aqueles que ousam ultrapassar nossas barreiras de decoro tão sutilmente construídas? – fez de sua doçura para com a criança uma mágica para os corações dos adultos. Não contente em satisfazer a menina, estendeu o convite gelado para os outros passageiros que polidamente recusaram, como convinha ao seu véu social. Não funcionou. Ela levantou-se  e insistiu persistentemente com uma jovem moça até todas as tênues barreiras terem sido rasgadas e o vagão inteiro tivesse o riso da criança nos lábios.

Por fim a moça se rendeu e tascou os dentes no sorvete que sua voz recusava, mas seu coração desejava. Nada higiênico, eu sei. Mas não é todo dia que se pode provar a felicidade. E milagre, houve a multiplicação da delícia gelada. Multiplicou-se em cada rosto que saiu lambuzado com um sorriso e com o gosto do riso na língua.

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