O poder de um som

Cinco e meia da manhã. Estou saindo do banho quando ouço a agitação de um molho de chaves passando na rua e sei exatamente quem é. Esse som acompanha os passos de uma senhorinha que segura uma bolsinha de moedas com o tal molho de chaves pendurado no zíper. Ao passar pelo meu portão também ouço os calçados em contato com o asfalto do caminhar e conto mais 30 segundos até ouvir o portão do vizinho bater.

Pouco tempo depois, ouço o som do portão e das chaves de novo, mas dessa vez seguido por duas portas de carro se fechando e o motor ligando. Então o carro parte, sei que está a caminho da padaria, a mesma de todos dias. A qual a senhorinha chega e já desce do carro mais iluminada que o sol iluminando a manhã, sem passar despercebida e recebendo cumprimentos, sorrisos, notícias sobre a vida das comadres e acontecimentos do bairro..

Pelo resto do dia, o sacolejar das chaves é ouvido em todas as ruas. Na rua do depósito que ela não entra mas recebe oi, na rua da escolinha que leva seu neto, na rua do mercadinho que entra nem que seja só para encher o saco dos funcionários, na rua da igreja que frequenta de quinta, sexta e domingo, além de não perder um dia de quermesse, na rua da feira que sempre para pra bater papo com a moça que vende suprimentos para feijoada e em tantas outras. 

De tantas ruas, é claro que a mais significativa é a minha, em que eu a ouço de manhãzinha antes de sair de casa e depois que volto com o cair da noite, sempre perto do horário da janta. Sendo este, o chacoalhar das chaves mais significativo do dia, porque junto dele vem o assobio como um presente pedindo para entrar. 

Ao abrir a porta, eu vejo aquele serzinho reluzente, de pouco mais de um metro e meio, que me abre um sorriso e melhora o meu dia com um “Oi, Tatá! Como foi hoje?” Então eu sorrio de volta, caminho até o portão e o abro para ganhar o abraço capaz de esquentar a noite mais gelada do ano. Depois disso entramos, para eu responder a pergunta, trocar risadas, experiências e aprendizagens. Até que fica tarde, ela precisa ir embora e eu ouço o último balanço das chaves do dia acompanhando do meu portão a senhorinha descendo a rua.

Cinco e meia da manhã. Estou saindo do banho e não ouço aquele agitar de chaves. Já são quase 14 meses desde que acordo com um silêncio ensurdecedor e sinto falta da sincronia dos passos com o barulho dos metais em contato pelo balançar do corpo. 14 meses desde que meus vizinhos e as outras ruas do bairro não ouvem mais a felicidade e inocência passando em frente suas casas. Muitos podem dizer que 14 meses é bastante, e mesmo com já passados 14 meses o bairro sente falta e comenta a falta que a senhorinha e seu chacoalhar fazem. 

Por fim, quem diria que uma senhorinha baixa que falava engraçado faria tanta falta na vida de um bairro todo? E que mesmo com todas as coisas boas que ela deixava por onde passava, um som que ela provocava se tornaria único, inconfundível, impossível de ser reproduzido do mesmo jeito e causador de tanta dor pela falta dele?

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